segunda-feira, 27 de setembro de 2010

uma pausa, uma homenagem

para Ana Domingues... lá do blog do Simão Pessoa:


Eu estava no meio do mato quando recebi um soco no olho. Morreu Ana Dominguez. 
A nossa fada de alma de cristal não resistiu à mesmice do planeta, depois de brigar durante mais de 15 anos com um câncer filho da puta. 
O homem vai a Lua, sondas espaciais vão a Marte, o acelerador de partículas da Europa consegue descobrir a partícula meza PI negativa (deus?) e ninguém consegue dominar essa doença da muléstia. 
Minha mãe morreu dessa merda em 1978. 


De lá pra cá, tenho (temos) perdido um monte de gente boa para essa guerra ingrata: Elaine Ramos, Maria Teresa (esposa do Mário Adolfo), Bernadeth Andrade, Joaquina Gama (mulher do jornalista Castelo Branco), Sandra Regina, Fernanda Mascarenhas, Carla Vaz, Lucíola Santos, Paula Souza, Marcela Bulcão, Ana Paula (minha sobrinha, com 24 anos, recém-formada em Medicina), Luiza Souto, Fátima Silva e tantas outras companheiras de escola.
Ana Dominguez, eterna guerreira, resistiu o quanto pôde. Brigou mais de 15 anos, sem se acovardar.
De repente, nesse sábado, ela preferiu subir lá pro 2º andar e conversar pessoalmente com os seus manos e manas – Bernadeth Andrade, Nestor Nascimento, Antonio Paulo Graça, Narciso Lobo, Anibal Beça, Eugenia Turenko, Marcos Figueira, Anisio Mello –, a continuar aqui, nos encantando com tanta doçura. 
Morreu Ana Dominguez, mulher de Álvaro Bandeira, mãe de Ian e Luciana (duas pérolas do meu bem querer), irmã de Renan Freitas Pinto, cunhada de Neide Gondim, tia de Matheus (leia-se “Sodabilly”), e tão querida de tanta gente que não saberia nomeá-los sem cometer uma injustiça exagerada. 
Como se houvesse injustiça mais exagerada do que a Ana Dominguez nos deixar tão cedo, tão linda, tão generosa, tão solidária na sua fé inabalável em um mundo melhor. 
Durante a sua partida, o mundo não desabar em terremotos, vulcões, tsunamis, inundações e outras presepadas é que me faz desconfiar da existência de Deus.


Conheci a Ana e o Álvaro já se vão uns bons 25 anos. Mas sempre tive a impressão de tê-los como amigos desde que nasci.

Álvaro foi o único “barman” de Manaus – que eu conheço – capaz de fazer um “Manhattan” como se deve. E não vou perder tempo aqui fazendo considerações a respeito.

Em meados dos anos 80, Paulinho Bossa Nova me convidou para uma apresentação que iria fazer, num sábado, no Bazar dos Livros (que eu não conhecia). 
Como iria rolar uma feijoada, convoquei o Mário Adolfo para me acompanhar. A gente foi.
Devia ter umas 60 pessoas na feijoada. A maioria eu conhecia de vista (pessoal do grupo Tariri, pessoal do Kukuro, pessoal do DCE da Ufam).
O Bazar dos Livros ficava ali no início da Constantino Nery, quase no canto da Leonardo Malcher, salvo engano, encafifado em uma vila. 
Foi um dos “sebos” mais “off road” que conheci – e devo ter comprado pelo menos uns dez livros da melhor qualidade nessa primeira vez em que estive lá.
Quando a gente abandonou o pedaço, por volta das sete horas da noite, eu já estava irremediavelmente apaixonado pelo casal. 
Soube que eles haviam aberto o primeiro “Bar Galvez” (no cruzamento das ruas Major Gabriel com a Ipixuna), inspirados no livro do Márcio Souza, mas que queriam mesmo era expandir o índice de leitura na cidade.
Já naquela época, 1986, 1987, Álvaro e Ana Dominguez acreditavam que só por meio da leitura e do conhecimento a humanidade seria capaz de evoluir. 


E eles estavam apostando tudo nessa (para mim, saudável) convicção.
Voltamos a nos encontrar dois anos depois. 
A experiência do Bazar dos Livros os levou a abrir o Bar Ecológico, ali no Dom Pedro, que também vendia livros, mas cujo foco era a questão ambiental. 
Na época, eu era correspondente em Manaus do “Boletim do Pensamento Ecológico”, editado em São Paulo pelo Luiz Carlos de Barros, de forma que aquilo foi mais ou menos como juntar a fome com a vontade de comer. 

Durante os seis anos de existência do bar (de 1988 a 1994), eu era presença constante em todos os sábados, tendo, inclusive, lançado alguns livros no pedaço. 

A feijoada feita pela Ana Dominguez era um verdadeiro manjar dos deuses.
Os coquetéis feitos pelo Álvaro eram para serem degustados de joelhos (o na época deputado federal Luiz Fernando e o hoje manda-chuva do TRE Ricardo Maia, que não saíam de lá, sabem do que estou falando).
Duvido que tenha existido, na época, um boteco melhor pra se discutir, conversar, colocar quebranto em adolescentes (ninguém sabia o que era pedofilia) e exercitar o fato de estar vivo.
Alguns anos depois, Álvaro e Ana resolveram reabrir o “Bar Galvez” (o pioneiro havia fechado) e escolheram um local no início da rua Ipixuna, próximo da Castelo Branco, na Cachoeirinha. 

Alguns dos meus melhores aniversários (com Lucinha Cabral, Candinho & Inês, Célio Cruz e Carlos Castro se revezando no microfone) foram celebrados ali.

Um par de anos depois, o Galvez mudou de pouso e foi se instalar ali em frente da Utam, onde está até hoje. 
Foi lá que conheci um dos melhores textos dessa nova geração, o meu brother Ismael Benigno (o título do blog dele, “Malfazejo”, trata-se, evidentemente, de uma ironia, já que ele é uma das pessoas mais benignas que essa terra é (será) capaz de produzir).
Só fiquei cabreiro porque pedi para ele experimentar um dos pratos mais bonitos feitos pela Ana Dominguez – o famoso “arrumadinho”, que leva charque, feijão de praia (no lugar do tradicional feijão-verde), calabresa, verduras e farofa –, e ele preferiu um sanduba de queijo. 
Em condições normais de pressão e temperatura, eu teria lhe dado seis tiros à queima-roupa na altura do coração. Wyatt Earp. Doc Hollyday. Bill the Kid. 
Mas como a Ana Dominguez se sentou conosco para conversar a respeito da iguaria, deixei meu instinto homicida de lado. 
Saber que nunca mais a doce Ana vai lhe falar “Experimenta aí, porra. Se não gostar, cospe fora! O Simão adora isso e faz propaganda pra todo mundo, não vá me embaçar o prato!”, não vai lhe deixar dormir em paz pelas próximas duas décadas. 
Grande Ismael Benigno, meu mano em tempo integral!
Às vezes, a Ana Dominguez me ligava de supetão:
– Amanhã é o aniversário de morte do Lupícinio Rodrigues e o Álvaro vai fazer uma onda especial lá no botequim. Divulga aí...


Explicar pra ela que eu não estava mais trabalhando em nenhum jornal era perda de tempo.
– Que porra nenhuma, Simão, os caras te respeitam! – ela dizia, determinada, abusada, invocada. “Manda pra lá que eles publicam. Não tem ninguém com o teu pique pra escrever coisas assim...”
Aí, o jeito era pesquisar coisas inusitadas que, supostamente, seriam exibidas no Bar Galvez.
E eu mandava uma, duas, três histórias diferentes para cada jornal. 
Uns publicavam, outros preferiam a mesmice (show do Carrapicho no Parque do Idoso, Berg Guerra na Ponta Negra, Raízes Caboclas no Teatro Amazonas). Fazer o que?

Há uns cinco anos, a Ana me enquadrou:

– Vamos contar a história do Bar Galvez? Eu já falei com o Aldisio (Filgueiras), com o Anibal (Beça), com o Narciso (Lobo), com o Rogelio (Casado), com o Renan (Freitas Pinto), com o Ademir (Ramos) e com o Marcos (Barros). Cada um deles vai fazer um depoimento. Você junta tudo e amarra a história. O Carlão (Dias) vai me dar as fotos. Você topa?
Claro que topei. Comecei a pressionar o Álvaro para me dar os textos e a gente começar a colocar o bonde no trilho. Foi na mesma época em que a Ana começou a acreditar que a porra do câncer era pra valer. De vez em quando eu chegava no bar e não estavam nenhum dos dois. O “Arlindo Jr.”, chefe dos garçons e braço direito do Álvaro há dez anos, me confessava, baixinho:
– A patroa passou mal. O Álvaro está com ela no hospital.
Eu achava aquilo tudo um exagero. Não era.
Falei com o jazzmaníaco (o livro “Matou Bashô e foi ao cinema” foi dedicado a ele) Álvaro Bandeira no início do ano. 
Eu estava no Bar Caldeira e ele ia passando, quando me viu. 
Nos abraçamos como velhos sobreviventes do Oeste selvagem. Wyatt Earp e Bill The Kid.
– Cuméqui tá a Aninha! – atirei primeiro.


– A gente está na luta, estamos sobrevivendo... É uma luta escrota, mas a gente vai ganhar – disparou o Álvaro.
– E os moleques? Cumé qui ele estão? (eu ainda achava que o Ian Dominguez, DJ de house music, tinha 15 anos, e a lindíssima Luciana, uns 13 anos, que foi mais ou menos a época que os conheci)
Álvaro, morrendo de rir:
– A gente já vai ser avô, cara! A gente já vai ser avô! Aparece lá no bar, pra eu te contar os detalhes!
Não apareci no bar. Eu sou pródigo em fazer cagadas.
Aí, ontem, sábado, chega pelo celular uma mensagem do poeta Zemaria Pinto: “Você já soube o que aconteceu com a Ana Dominguez? Que sacanagem...”
Só consegui ligar para o jornalista Orlando Farias, do BlogdaFloresta, para ele apurar a veracidade do caso. 
É muito provável – se existir o outro lado – que a Ana Dominguez esteja, nesse momento, fazendo uma daquelas feijoadas que fazia o Antonio Paulo Graça tirar a camisa (depois de dois pratarraz) e reclamar:
– Porra, bicho, a Ana exagerou...
E me irmanar ao Álvaro, ao Ian e a Luciana nessa dor pela ausência (porque pela querência, a Ana Dominguez vai sobreviver pelo resto da vida em nossos corações). 
Minha mana querida, a festa acabou – em termos. 
A gente se vê por aí.


E, por causa de você, menina, a porra do livro contando a história do Galvez vai sair nem que me matem. 
Você controla essa presepada aí de cima. 
Beijos.

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